Para todos aqueles que já se defrontaram com o
dilema de ter filhos, esta pergunta sem dúvida é aquela que mais os pais ou os
pais em potencial se fazem. Já ouvi muitos dizendo que o mundo de hoje é muito
violento, ou que os filhos dão muitos gastos etc. Uma e outra razão não estão
incorretas; porém, é importante ter em vista que o mundo de antigamente não era
menos violento e que o padrão socioeconômico de hoje mudou muito.
Acredito que não reside aí a dificuldade de criar
filhos nos dias de hoje. Acredito que a dificuldade que todo mundo diz haver
está no fato de que os filhos de hoje ganharam um estilo de vida próprio que
transcende a capacidade dos pais de ter certo “controle” sobre eles. A questão
então a ser feita seria: por que não se tem um controle maior sobre os filhos?
Em que medida isto se deve a um estilo de vida próprio?
Primeiramente, este estilo de vida se deve a uma
definição moderna das idades que “compartimentou” as crianças e os adolescentes
em fases que denominamos infância e adolescência, assim como existem outras
após estas. Quando se diz que isso é uma definição moderna, isto tem como
contraponto um passado que não criava uma separação entre crianças e adultos em
função da idade. Uma criança não passava por um processo de aprendizagem para
se tornar um adulto; na verdade, a criança desde cedo já era inserida em meio
aos adultos e não era vista como uma pessoa que necessitava de cuidados
especiais.
A partir do momento em que a sociedade achou que as
crianças precisavam ser cuidadas de uma forma diferente, algo foi tirado de
cena: a perspectiva de imitar aqueles que eram seus referenciais fundamentais
para a construção de sua personalidade, os pais ou familiares mais próximos. No
lugar disso, foram criados lugares especiais, as creches, as escolas, onde o
referencial das crianças são pessoas itinerantes, que estão de passagem em suas
vidas. Mas o que é mais problemático disso é que estas pessoas estão ali
exatamente para num certo sentido servi-las (não que as crianças tenham
discernimento pleno capaz de compreender claramente tal dimensão da relação em
que estão inseridas), o que cria inconscientemente o sentimento de que os
adultos devem satisfazer seus desejos, suas vontades. É claro que escolas e
creches não servem aos caprichos pueris de crianças e adolescentes; mas existe
ali uma situação em que os adultos as servem. Ou seja, enquanto antes o adulto
era a referência para a criança, hoje a criança e os adolescentes estão num
universo em que os adultos até são modelos para eles, mas um modelo muitas
vezes de subserviência.
Por que isto ocorre? A sociedade tem uma dinâmica
social extremamente multifacetada; pais e mães não conseguem mais trabalhar e
ter os seus filhos ao lado deles como no passado. Cria-se então a necessidade
de haver lugares especiais que ofereçam cuidados fundamentais às crianças.
Nestes lugares, elas se tornam o centro de tudo, justamente pelo fato de o
lugar só existir em função delas. Quando voltam para casa, pais e mães não têm
tempo suficiente para se dedicar a elas; para minimizar a falta de tempo que os
pais têm para se dedicar aos filhos, muitas coisas são criadas para distrair a
atenção das crianças: jogos, brinquedos etc., o que mostra um cenário de que
tudo o que é feito é feito para elas (muitos pais para apaziguar a agitação dos
filhos, dão brinquedos, jogos para que ocupem o lugar que caberia a eles na
interação pai/filho).
O que tudo isso mostra? Que a criança passou a ter
um lugar específico perante a sociedade e que tudo aquilo que é feito para ela
tem contribuído para que sejam pessoas autocentradas – o mesmo serve para os
adolescentes. Outro aspecto é a mudança de concepção do tipo de pessoa que
adultos e crianças passaram a exercer: antes a criança era colocada no
meio de adultos e passava a imita-los em diversos aspectos – o centro
dessa sociedade, portanto, era o adulto; hoje, a criança é colocada diante
de adultos para ser servida (cena clássica é aquela festinha em casa em que os
adultos deixam de conversar entre si para focar o que as crianças estão
fazendo). Não estou querendo com isso dizer que achava melhor o modelo
anterior; certamente o tipo de atenção que era dispensado à criança muito
provavelmente tinha consequências negativas: o padrão social de antes era muito
diferente do de hoje. O que é importante pensar é que o modelo de hoje
inevitavelmente está oferecendo problemas ao modo de ser das crianças e
adolescentes e que isso terá consequências perversas para elas e para a
sociedade no futuro – principalmente pessoas que não conseguirão ser
independentes quando adultas. A total atenção dispensada a elas gera uma
situação de dependência e isso é ruim quando forem enfrentar uma sociedade que
requer, sobretudo, autonomia para as diversas esferas da vida – trabalho principalmente.
Mas para aqueles que acham que esta reflexão possa
ser absurda, descrevo uma situação que ocorreu: uma mãe chegou para o dono de
um estabelecimento, uma lanchonete, e pediu para que ele mudasse o canal da
televisão, porque o filho queria assistir a uma novela infantil e que se não o
fizesse, ela teria de ir embora para que o filho não perdesse o programa de
entretenimento – o dono do estabelecimento consentiu...
O que se observa deste caso? Que a criança não
apenas percebe que seu referencial fundamental a serve, no caso a mãe, como as
outras pessoas do estabelecimento estão ali para satisfazer a sua vontade. Neste
sentido, como será possível conseguir ter controle sobre os filhos? Uma última
pergunta: como é possível construir uma sociedade cujas instituições ou modelos
sociais possam preceder de modo favorável aqueles que estão em processo de
construção de suas personalidades? Deste modo é impossível.